quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

meu.estado.de.sítio.


ele morava num vilarejo ao noroeste da síria e era feliz e achava que estava tudo bem, mas um dia um ataque de gás o atingiu. ele era muito forte. sobreviveu e foi expulso do vilarejo. ouviu as histórias de que o exército do seu próprio governo havia envenenado o vilarejo. fugiu e correu para as montanhas. havia indícios de que seria possível ficar e ele se escondeu. parecia que o exército abriria diálogo. negou-se partir. pareciam recuar e ele quis esperar. mas meses depois, os bombardeios voltaram. dessa vez, perdeu uma perna e teve queimaduras de terceiro grau em todo o dorso, do lado esquerdo. mas o exército o levou para o hospital improvisado. cuidou dele. disse que na verdade, esse tempo todo, quem esteve atacando o vilarejo não eram os soldados do governo. era a milícia do califado. porque o exército ainda se preocupava com os cidadãos, cuidava deles. isso era culpa dos terroristas. você é um terrorista. o exército fez que fez e o convenceu de que ele podia confiar novamente no exército de seu país. mas agora ele não era mais tão forte. era deficiente. requeria cuidados específicos e frequentes. o governo disse que ia cuidar de tudo, mas logo sua atenção se voltou a exércitos paramilitares e revolucionários. o pedaço de perna estava gangrenando. o governo disse que teria que se encontrar com o líder da milícia uma última vez. tinha que pegar de volta uma AK-47 que havia emprestado. ele disse para o governo deixar pra lá, mas eles disseram que uma AK-47 é muito cara pra se deixar pra lá. seria só um café rápido, combinado via rede social. e, ao contrário do que o governo prometeu, logo mais outras bombas vieram e ele, agora, perdeu o braço direito. mas o governo disse que iria arcar com a prótese. ele estava arrasado, mas ainda achava que o governo podia cuidar dele. um dia, porém, flagrou o governo visitando páginas-mapas de outros exércitos regionais. o governo não iria cansar de guerrear. foi denunciado por traição ao regime e não teve opção. cruzou a fronteira da turquia e foi ficar um tempo na europa. ouviu que eles o aceitariam. atravessando uma tempestade de areia no caminho, ficou cego. chegou ao continente velho, beirando a humanidade zero. sentiu saudade de casa. muita. tinha as memórias mais lindas dali. daquela terra. daquela casa. do calor e do aconchego. antes de tudo. do gás, da bomba, das promessas, da guerra. recebeu a carta de um amigo dizendo que agora tudo ia ficar bem no vilarejo porque finalmente a região conseguiu "estabilidade". ah, que tentação. tudo aquilo de volta. rever tudo. viver de novo. mesmo sem perna, sem dorso, sem visão. ele poderia voltar, mas como cidadão comum, não. ele não iria ter mais sua cidadania. se quisesse voltar, teria que aceitar a clandestinidade. o que sentia por sua terra era tão bonito, intenso e verdadeiro, que resolveu dar mais uma chance e voltar. e supôs que ser clandestino era possível. mas enquanto o governo lhe dava suporte e programas sociais, nas reuniões diplomáticas não o convidava e nem se quer falava dele. ele não era mais um cidadão de sua terra. ser clandestino era ser atendido quando fosse possível. quando fosse conveniente. ele aparecia no palácio e não era recebido. nos dias de comemoração, não podia desfilar. o pedido de desculpa era sempre sigiloso. nada público. nada aberto. suas reivindicações não lhe eram creditadas. e ele, assim, foi enlouquecendo. pesadelos diários de bombas caindo-lhe na cabeça. sem saber a origem ou o trajeto. um dia, saiu andando à esmo. foi preso. e solto. considerado indigente. apanhou. passou fome, frio, medo. até que uma combi na onu o encontrou desacordado no deserto e o levou à grécia, num acampamento. 

foi você quem exilou o meu amor. anistiou-o brevemente para logo em seguida o relegar à clandestinidade. 

meu amor, hoje, não é nada mais que um refugiado sem pernas e braços. sem enxergar, uma memória doente do que já foi. um velho teimoso que recebe seus cartões postais de paisagens que não estão mais lá. você me convida a passear e as mostra, orgulhoso, mas simplesmente não as vejo. não tenho onde ir. você tirou a minha casa. sou uma clandestina emocional na minha própria terra.

eu posso partir, um dia. mas, meus ossos, os deixo à vista. pendurados no hall do palácio por um cordão corroído pela sua estreitura. todo cidadão que adentrar o teu paço vai esbarrar a testa no meu esterno. e você, autoridade, nunca terá a força para remover meus espólios. será o teu legado. desesperadamente, até o fim dos teus dias e tuas longas noites.


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