desde cinco, seis anos, quando chegava em casa com algum hematoma e meu pai flagrava, ele dramatizava a voz (coisa que ele não fazia nunca) e me dizia, tocando no machucado: "Filha! Como você fez isso?" eu logo me surpreendia, pois nem tinha notado o hematoma - na maior parte das vezes nas pernas - e também não tinha a menor ideia de onde ou quando aquilo teria acontecido. talvez tivesse ali há mais dias e ele simplesmente não tinha notado antes pois eu vestira calças. também porque, dada a minha descorada pele, qualquer embate de ar contra carne já era pretendente para escurecimento. e eu genuinamente não sabia e nem tinha notado. mas ao observar seu semblante de indignação, eu me amedrontava e pensava com força, sem economia, vasculhando minhas ultimas vinte e quatro horas em busca de algum impacto importante da minha aventurada vida do jardim de infância. minha cabeça chegava até a doer de esforço. olhava para ele, examinando meu roxo; olhava para o formato do machucado. nada. aquele crápula purpúreo não me suscitava lembrança alguma.
enfim, dentro da minha inquestionável habilidade em criar histórias, eu virava para ele e dizia: "Não sei." aí então, a indignação alcançava os ombros da revolta. "Mas como não sabe?" eu, muda. "Meu Deus, filha, não pode! Tem que prestar atenção! Onde já se viu? Bater a perna e nem lembrar como foi? Olha esse roxo! (passando a mão novamente) Tem que tomar cuidado! (mais comovido)". eu concordava envergonhada e ele logo me soltava para colocar o arroz no prato.
então, eu saía da cozinha e percorria o corredor até a sala. pesada. toda a culpa do mundo estava sobre minhas pernas. exageradamente brancas e tolas. como eu não sabia onde me machuquei? como eu, uma criança de seis anos, brincando no recreio, não sabia exatamente por todos os lugares que passei correndo, os nomes das crianças bizarras que trombei, as alturas dos postes católicos do colégio que não desviaram da minha canela? como?? esclerosada.
décadas depois, meu pai ainda cultiva um hábito ao me encontrar. num tom amigável e leve, ele diz que não sabe muita coisa sobre o que está acontecendo na minha vida, que precisamos nos encontrar mais e tal. eu digo que ele sabe, claro, e conto algumas superficialidades. mas ele está certo. não corro apressada para lhe mostrar meus feridos de guerra. talvez porque, agora, eu sei. algumas vezes, não sou responsável. algumas vezes, acontece. acidentalmente. é isso. nenhum grande segredo oscilante. só não sou culpada por tudo que me golpeia, papa.
mas quando meu amante doce atravessa o indicador, cortando a batata da nossa tortilla de domingo e pinta minha pia de sangue; eu logo fico aflita e, apanhando o antiséptico, deixo escapar: "Ai, querido! Toma cuidado...tá doendo?"
sim.
pelo menos eu acrescentei o "tá doendo".
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